"E então, o que acha de minha proposta?". A pergunta
ecoava na mente de Hélio. Já havia se formado como Tecnólogo em
Processamento de dados fazia um ano. Tinha realizado um bom estágio
em São Paulo, onde realmente aprendera muito e, é claro, copiou em
um pendrive as ferramentas necessárias para que pudesse trabalhar
por conta, quando deixasse a empresa, incluindo uma linguagem de
programação de computadores. A proposta de Cassiano não era
exatamente a que imaginava em seus sonhos, mas tantos se formam e não
conseguem se encaixar no mercado de trabalho, e ele já estava sem
emprego há um tempo considerável.
Era sexta-feira e até que tudo tinha acontecido rápido naquele
final de tarde. Cassiano havia explicado:
- O que eu quero que você desenvolva é um pequeno controle
financeiro. Nada muito complexo. Na verdade eu já tenho tudo em
mente e posso lhe instruir. Você só vai precisar traduzir isto para
o computador.
- Mas, Sr. Cassiano, eu preciso lhe dizer que não tenho
experiência alguma com sistemas desse tipo. Até agora eu só
desenvolvi alguns sistemas para a área de estoques e compras. Não
sei se tenho o perfil adequado para este projeto - Hélio replicou.
Na verdade, Hélio temia aceitar aquela proposta. Não confiava
suficientemente em si mesmo. Não que fosse o caso de julgar-se
incapaz, mas sabia que não era rápido. Seu maior medo era enfrentar
uma situação de pressão maior do que pudesse aguentar, embora
soubesse intimamente que poderia enfrentar qualquer desafio, mesmo a
contragosto, pois já tinha passado por isso.
Porém Cassiano estava decidido. Os argumentos de Hélio contra si
mesmo não o convenciam. Colocou-o contra a parede com aquela
pergunta:
- E então, o que acha da minha proposta?
Se existisse uma saída honrosa, certamente Hélio a seguiria. Mas
não havia outra opção senão aceitar a oferta:
- Aceito, Sr Cassiano.
- Muito bem! Você começa então já na próxima segunda-feira -
concluiu com satisfação.
"Segunda-feira", refletiu Hélio. "Que bom! Pelo
menos assim ainda tenho alguns dias de liberdade antes de começar a
trabalhar...". No que dizia respeito ao trabalho, Hélio era de
um pessimismo quase incorrigível. Até mesmo algo que lhe soava
otimista era, no fundo, pessimista.
***
Segunda-feira. Angelina, a secretária, o atendeu. Ele sequer
a havia cumprimentado. Então Cassiano o chamou para começarem a
conversar sobre os detalhes:
- Hélio, o que eu realmente quero fazer é uma contabilidade
gerencial, para simples conferência.
- Contabilidade? Isso não é muito complexo?
- Não. Não é o caso. É apenas um controle interno.
Hélio nunca se perguntou sobre o motivo de existir um sistema de
contabilidade paralelo, mesmo que simplificado. Na realidade esta
questão sequer se aproximou de sua mente. Hélio era essencialmente
um técnico. Não se prendia a considerações mais profundas.
Poderia ter questionado se tratava-se de algo ilícito mas, embora
seu cérebro funcionasse muito bem com questões de lógica pura, não
funcionava tão bem quando tinha que lidar com as questões práticas
da vida real.
De fato, reagia muitas vezes de uma forma desconcertantemente
emocional. A simples menção da palavra "contabilidade"
causava-lhe a impressão de conter uma complexidade imensurável. Se
pudesse, sairia correndo dali. Mas Cassiano mostrava-se paciente e parecia estar
disposto a passar-lhe todos os detalhes:
- Eu pretendo controlar diversos clientes meus pelo sistema -
Cassiano começou a especificar.
- Ou seja, você sempre vai selecionar primeiro o cliente com que
deseja trabalhar, antes de mais nada - observou Hélio, sem
reparar que havia trocado a palavra "Sr" por "Você". Seus instintos começavam a aflorar para enfrentar o desafio que se propunha, mesmo que não o percebesse conscientemente.
- Isso mesmo. Outro detalhe é o plano de contas. Todos os valores
tem que ser armazenados em contas e estas contas juntas formam um
plano de contas.
- Esse plano de contas pode ser igual para todos os clientes?
- Não, cada cliente tem o seu e são diferentes.
- Mas eu posso criar um modelo desse plano para facilitar a
inclusão de novos clientes?
- Pode - ponderou Cassiano.
Passaram horas conversando, trocando detalhes sobre como seriam os
lançamentos e sobre os relatórios que seriam criados. Hélio tinha
em mente criar um sistema que permitiria entrar novos dados a
qualquer momento e, ainda assim, os saldos se atualizariam
instantaneamente, tornando possível a consulta de valores referentes
a qualquer data que fosse escolhida. Quando tudo se tornara claro,
definido, e devidamente anotado, já estava pronto para começar seu
trabalho.
Mal saíra do escritório de Cassiano quando Angelina
o interrompeu:
- Aceita um cafezinho? Fiz agora mesmo.
- Aceito sim - disse Hélio. Hélio jamais recusava um gole de
café.
- O seu nome é Hélio, não é? Meu nome é Angelina.
Hélio pensou sobre a indiscrição que havia cometido, pois já
começara a trabalhar e nem sequer se importara de perguntar à
secretária sobre seu nome. Prosseguiu:
- Sim, meu nome é Hélio. O Cassiano me contratou para
desenvolver um sistema de contabilidade.
- Eu sei. Ele me contou que você vai criar um programa de
computador. Você vai vir às tardes, não é?
- Sim. Todas as tardes.
- E eu vou operar o programa todas as manhãs. Como nós temos
apenas um computador, nós vamos precisar revezar.
***
Hélio trabalhava, portanto, durante meio período, enquanto a
jornada de trabalho de Angelina era de oito horas diárias. Quando
Hélio chegava, conversavam sobre ameninades, bebiam café e às
vezes escapavam algumas piadinhas entre os dois. Cassiano quase não
fazia parte de suas rotinas, mas de tempos em tempos chamava Hélio
para sugerir alterações no sistema.
Certa vez Cassiano o chamou para verificar a possibilidade de
tratar moedas estrangeiras:
- Hélio, acredito que poderíamos trabalhar também com moedas
estrangeiras. Poderíamos começar pelo dólar.
- É uma ideia interessante. Porém há alguns pontos que tenho
dúvidas sobre como implementar - refletiu Hélio.
- Que tipo de dúvidas?
Hélio explicou:
- Um dos princípios básicos neste sistema é que os saldos são
calculados pura e simplesmente sobre a soma dos lançamentos,
correto?
- Correto.
- Nesse caso, eu vou precisar converter os valores lançados de
acordo com a cotação da moeda estrangeira. Certo?
- Certo.
- Mas pode ser que a moeda valorize ou desvalorize. Então os
saldos calculados vão flutuar de uma data para outra apenas por
causa da cotação do dólar.
- Novamente correto.
- A princípio eu ainda não tenho ideia de como fazer isso sem
recalcular todos os lançamentos, todo dia. Mas este não é todo o
problema.
- Não é?
- Sim. Pelo menos teoricamente, é possível que haja alguns
lançamentos em moeda estrangeira que não devam ser recalculados
devido a oscilação de cotações.
- Também está correto - assentiu Cassiano.
- Nesse caso, qual dos dois padrões o sistema deve assumir?
- Os dois.
- E você tem alguma ideia de como fazer isso?
- Não.
- E eu também não - confessou Hélio.
- Melhor deixarmos este assunto de lado - desistiu Cassiano.
***
Noutro dia Cassiano chamou-o novamente. Dessa vez pretendia
definir sobre como seria o fechamento mensal. Em determinado momento,
Hélio o interrompeu:
- Uma vez que seja realizado o fechamento, poderá ser desfeito?
- Não. Uma vez fechado o mês, está definitivamente fechado -
afirmou Cassiano, de forma decisiva.
- Ok. Vou pressupor isso então - assertiu Hélio.
E muitas outras alterações iam surgindo. Algumas se tratavam de
detalhes superficiais e um tanto supérfluos. Algumas se tratavam de
reestruturações muito complexas. Algumas eram descartadas já no momento em que estavam sendo definidas. O pior, no que dizia respeito a Hélio, era
que Cassiano mudava muitas vezes de opinião, o que o levou a criar
diversas versões alternativas do sistema, armazenadas cada uma das
quais em pastas diferentes no computador. Ele próprio se confundia
sobre em qual versão estava trabalhando. Foi quando, numa das
mudanças de opinião de Cassiano, acabou por excluir todos os dados
do sistema através de uma deleção impensada.
Quando se deu conta do que havia feito, procurou não
se desesperar. Pensou nas alternativas. Poderia recuperar as
informações excluídas? Não dispunha de um utilitário desse tipo.
Poderia recuperar um backup? Precisava conversar com Angelina para
descobrir se havia algum:
- Angelina?
- Sim?
- Vocês realizam backup do sistema com alguma frequência?
Angelina sorriu, um tanto desconcertada. Respondeu:
- É claro que não, Hélio. Você é o responsável pela
informática na empresa. Cabe a você realizar as cópias de
segurança.
Hélio engoliu em seco. Aquela era sua última esperança e, pior,
ele (e somente ele) era o responsável pelo que tinha ocorrido.
Estava diante de seu pior pesadelo profissional. Havia eliminado
todos os dados do sistema que tinha construído. Desabafou:
- Angelina, sabe o sistema de contabilidade que eu desenvolvi?
- Sim...
- Pois então, eliminei de forma irreversível todos os dados. Não
sei o que fazer. Minha última esperança era o backup.
Angelina abriu um largo sorriso e então disse:
- Você perdeu os dados que foram informados ou o programa que você criou?
- Eu tenho diversas versões do programa, em muitas pastas. Mas
sobre os dados, eu tinha apenas aquela cópia.
- Então não tem problema. Espere um pouco que vou lhe mostrar
porquê.
Hélio aguardou alguns minutos ansioso. O que será que Angelina
poderia fazer por ele? Angelina voltou com diversas pastas em suas
mãos. Explicou:
- Hélio, aqui estão todos os relatórios impressos do sistema.
Clientes, planos de contas, lançamentos e tudo o mais que foi
cadastrado. Tudo o que você tem a fazer é digitar.
O semblante de Hélio se iluminou por instantes, logo depois
deixando-se dominar novamente pela preocupação. Indagou:
- Mas eu vou precisar de alguns dias para poder digitar tudo isso.
- Deixe isso comigo - assegurou Angelina.
Hélio começou pelo cadastro dos clientes, os quais eram
relativamente poucos. Depois cadastrou os planos de contas de cada
cliente (felizmente havia um modelo padrão de planos de conta). A real dificuldade foi digitar todos os lançamentos, mas em uma
semana havia concluído o trabalho. Chamou Angelina e disse-lhe:
- Tenho uma notícia boa para lhe contar. Terminei de cadastrar
todos os dados!
- Que bom! Eu já não tinha mais como me livrar do Cassiano -
confessou Angelina.
Hélio raciocinou que Angelina deveria ser quem realmente fazia a
empresa funcionar. Afinal Cassiano não o havia importunado por um
dia sequer naquela semana em que estava "resgatando" os
dados do sistema.
***
Alguns dias se passaram e Cassiano o chamou para sua sala.
Disse-lhe:
- Eu sei, viu?
- Sabe o que? Por favor seja claro - respondeu Hélio, suando
frio.
- Eu sei que você é muito, mas muito lento.
Hélio se sentiu ofendido, mas não conseguia deixar de perceber
um aspecto cômico naquele comentário. Se Cassiano soubesse o que
realmente ocorreu...
***
No restaurante Pastel Mel, na avenida Higienópolis, os cúmplices
do segredo saboreavam duas deliciosas panquecas. Angelina
confidenciou:
- Sabe, não me sinto realizada profissionalmente onde estou
agora.
- Eu também não - concordou Hélio, em solidariedade.
Hélio prosseguiu:
- Não é um dos trabalhos mais motivantes e o
salário também não é dos melhores, principalmente para mim que
trabalho meio período. Sem mencionar, é claro, que não sou
registrado nem tenho contrato de qualquer tipo. Sou verdadeiramente
um trabalhador informal.
- É verdade. A sua situação é pior que a minha. Mas quer saber
de uma coisa? Eu estou planejando sair da empresa.
- Mesmo?
- Sim. Preciso dar um rumo à minha vida.
- Que pena. Você é uma das poucas coisas boas deste trabalho -
Hélio sorriu.
***
Na semana seguinte, Cassiano o chama para uma nova reunião:
- Hélio. Cometi um erro. Preciso desfazer o fechamento deste mês.
- Cassiano, você lembra que afirmou categoricamente que o
fechamento do mês nunca precisaria ser desfeito? É assim que
implementei.
- Pois agora preciso! Tem que ser desfeito.
- Sinto muito, mas não vai ter como fazer isso.
- Eu não acredito que você não teve competência para prever essa situação - desafiou Cassiano.
Já não se tratava de uma discussão na esfera profissional. O
insulto era pessoal. Hélio retrucou:
- Se sou incompetente, eu nem deveria estar aqui.
- Nesse ponto eu concordo - Cassiano provocou.
- Então eu peço demissão!
Como se fosse necessário pedir demissão, afinal legalmente Hélio nem estivera ali. Havia dito o que estava entalado em sua garganta e que até então não tinha encontrado coragem
para dizer. Cassiano finalizou a discussão:
- Concordo. Melhor assim.
Hélio saiu nervoso da sala. Angelina havia escutado todo o final
da conversa e quis consolá-lo, porém Hélio não lhe permitiu:
- Prefiro não falar sobre isso agora. Depois te conto tudo.
E saiu.
Já na rua, refletiu sobre os últimos minutos pelos quais havia
passado. Estranhava estar se sentindo bem. Ironicamente perguntou-se
em termos contábeis: "Qual foi o saldo positivo disso tudo?
Apenas saí da mesma forma que entrei?". Refletiu. "Não.
Eu aceitei um desafio e o levei bem mais longe do que imaginava ser
capaz". Refletiu um pouco mais: "E tem mais uma coisa.
Valeu por ter Angelina como amiga". Realmente havia saído
lucrando.