sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Voz de Veludo

18:50. Quase fim de noite. Mais algumas horas e a jornada de trabalho se encerra. Mas nada é muito fácil quando se trabalha como motorista de ônibus. As pessoas embarcam nos balneários ao longo do caminho, e "ai dele" se esquecer algum passageiro para trás. É necessário sempre conferir a lista das paradas.

Se bem que já faz isso há tanto tempo que se acostumou. Memória treinada, acredita. Deve ser o mesmo tipo de "fenômeno" que acontece com os atores que, pelo que ouviu falar, em cinco minutos decoram seus scripts. "Como é mesmo aquele termo que os atores usam?", pergunta a si próprio.

"'Deixa'. Isso, chama-se 'deixa'". Lembrou-se do conceito: "uma frase que marca quando se deve começar a falar. Assim que escutam as palavras certas, sabem que chegou a vez deles. Dessa forma não precisam decorar todo o texto". Refletiu que, com o tempo, o motorista experiente aprende a guardar os pontos de parada em sua mente, como se fossem deixas .

Mas quem sabe essa viagem seja tranquila? Lança um olhar pelo espelho, só para checar. "O que é isso?", pergunta a si mesmo. "O que aquela mulher está fazendo de pé?".

Reconheceu-a de quando a viu na rodoviária de Matinhos. Porém decidiu aguardar até a parada seguinte, onde embarcaria alguns passageiros. Abordou-a:
- Para sua própria segurança, a senhora não pode ficar em pé dentro do ônibus. Peço-lhe o favor de sentar-se.
- Mas moço, eu preciso ver se já estou perto de descer.

"Voz aveludada", um pouquinho rouca, como a de Cissa Guimarães. Por sinal, como ele tem um fraco por esse tipo de voz... Ela o chamou de moço, e ele a chamou de senhora... Deixou de lado estes pensamentos sem sentido e prosseguiu:
- Moça, ainda nem saímos de Matinhos, como pode ser que já tenha que descer?
- Sim, tem razão - ela assentiu, e voltou a sentar-se.

Rodoviária de Pontal do Sul. Passaram-se alguns minutos. Novos passageiros subindo, algumas malas no bagageiro. De repente, um cutucão em suas costas:
- Com licença, onde estamos?
- Aqui é Pontal do Sul.
- Será que o senhor poderia verificar se já está perto do meu ponto de descida?

"Agora chamou-me de senhor", refletiu entristecido.

- Ninguém desce em Pontal do Sul quando viaja vindo de Matinhos - tentou se expressar o mais suavemente possível.
- Tem certeza?
- Tenho. Para onde é sua passagem?
- É para Curitiba.
- Curitiba? Ainda são duas horas até lá - retrucou, sem disfarçar o espanto.
- Então está longe?
- Sim, bem longe - suspirou.

"Mocinha complicada", pensou. O ônibus prossegue em meio à serra. Meia hora depois,  ao conferir o espelho, novamente o motorista se depara com a mesma passageira, outra vez pondo-se em pé. Já lhe dá a resposta, mesmo sem ter escutado a pegunta:
- Aqui é o meio da serra! Estamos longe de Curitiba!
- Ah, desculpe! É que eu cochilei e fiquei com medo de perder o ponto.
- Mas aqui está cheio de mato...
- Desculpe-me...

"Destrambelhada", refletiu, porém não conseguia se irritar com a passageira, por mais que fosse tentado a tanto. "Ainda assim não deixa de ser simpática", pensou em voz alta.

Passou-se o tempo. "Chegamos?" pergunta a passageira, sem cerimônia.

- Ainda não - responde o motorista, já considerando natural a súbita intromissão - ainda estamos em São José dos Pinhais mas, em breve, chegaremos em Curitiba.
- Quanto tempo mais ou menos?
- Meia hora, mais ou menos. Aliás, onde você vai descer?
- Perto de uma fábrica.
- Qual fábrica?
- Ou armazém. Espera, deixa seu pensar. Acho que é uma distribuidora.

O motorista respira profundamente por alguns segundos, numa reação espontânea para tentar oxigenar o cérebro. Enfim, solta:
- Você espera que eu saiba onde você tem que descer?

Não conseguiu medir as palavras dessa vez. Enfrenta um olhar de desaprovação. Não resiste e procura remediar:
- Olhe, eu não quis dizer isso. Não quis ser grosseiro. É só o estresse do final do dia.
- Tudo bem, eu entendo. Deve ser muito estranho uma pessoa não saber nem onde descer.
- Não, não tem nada de estranho em você. Não importa o que aparenta...

O remendo só fazia piorar a situação. "Eu e minha grande boca...", pensou. Tentou mudar de assunto:
- E se for a fábrica da Coca-Cola? Se for perto de lá que você tem que ir? Fica próxima à saída de Curitiba.
- Se fosse a fábrica da Coca-Cola, eu iria saber, não é? Todo mundo conhece a Coca-Cola!

A passageira então foi se sentar, com ar de extremamente ofendida. O ônibus chegou à Curitiba, entrou nas vias urbanas e, enfim, adentrou a rodoviária. Durante todo o trajeto, o motorista, embora atento, não podia evitar o eco mental daquele último diálogo. De tempos em tempos dizia: "Eu e minha grande boca!".

Estacionou o ônibus e levantou-se para o desembarque. Auxiliava as pessoas junto ao bagageiro. Sentia-se frio. O que era ele, afinal? Apenas um número. Apenas um nome no crachá? Tomou uma decisão mentalmente: "A partir de hoje, eu nunca mais, mas nunca mais mesmo vou...".

Um cutucão em suas costas interrompeu seus pensamentos. Era a mesma moça, de novo. Abriu a boca, como que querendo dizer alguma coisa, mas tudo o que saiu foi:
- Ahn??
- Moço, desculpe-me. Eu tenho um gênio difícil...

Ele engoliu em seco. Ela então prosseguiu:
- Você foi muito prestativo e gentil. Eu não queria deixá-lo magoado.
- Não, você não me magoou - mentiu, sorrindo.

Ela o olhou nos olhos. Ele continuou:
- Como você vai fazer para ir para casa? Você perdeu o seu ponto.
- Não se preocupe. Eu sei me virar a partir daqui - disse, esboçando um sorriso.
- Que bom. Fico aliviado.
- Então, até semana que vem?
- Até... semana que vem?
- É. Vou ter que fazer essa viagem toda semana, bobinho. Para visitar minha mãe.
- Então "tá"! Tchau...
- Tchau...

E ela se foi. "Voz de veludo. Como é doce aquela voz de veludo", pensou ele. Ficou na dúvida sobre o que é mais doce. Seria aquele suave timbre rouco, ou seriam as palavras que lhe fizeram tanto bem à alma?

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Ensinando Valores

Domingo à noite. Silêncio em casa. Liz já está brincando há horas junto ao computador, normalmente vestindo a Barbie com o auxílio de um guarda-roupas virtual, ou montando quebra-cabeças criados a partir de suas fotos prediletas, ou então envolvendo-se em aventuras com a Moranguinho, sua personagem preferida.

Arnaldo aproveita o sossego para lavar louça. Impressionante como que, por mais que se lave, ela continua voltando. As pessoas simplesmente “se esquecem” de lavar os próprios copos e pratos, até que fique tudo sujo, novamente, novamente e novamente. “Talvez devesse ter menos louça, assim sujaria menos…”, raciocina.

Começa a organizar a tarefa, esvaziando o escorredor e colocando o que já estava limpo e seco em seu devido lugar. “E pensar que há homens que não fazem esse tipo de trabalho”, reflete, com a expressão comicamente revelando um ar de superioridade ao comparar-se com outros indivíduos do sexo masculino. “Hoje em dia não é justo que a mulher arque com todas as responsabilidades domésticas. Já pensou se Laura tivesse que se dedicar a todas estas tarefas depois de um dia estressante de trabalho?”, pergunta a si mesmo.

Abre um pouco a torneira e a deixa aberta. É preguiçoso. Sabe que desperdiça água, mas considera intolerável abrir e fechar o fluxo da água ininterruptas vezes. A consciência pesa um pouco ao pensar na escassez de água que assola grande parte do Brasil mas, ainda assim, não consegue deixar a preguiça de lado. Começa a ensaboar copos e pratos, colocando-os à parte.

“Pior seria se a Laura não trabalhasse fora e passasse o dia inteiro em casa. Como ficaria rabugenta…”, estremece. “Quer saber, melhor continuar lavando louça e parar de filosofar!”, sorri.

Quase que imediatamente em seguida, ele escuta o barulho de algo caindo na sala. Um som de objeto sólido. Liz começa a chorar. Arnaldo fecha a torneira e corre para ver o que aconteceu. A pequena está sentada sobre o chão, com lágrimas escorrendo. Arnaldo chama sua atenção:
- Liz, o que aconteceu? Porque está chorando?
- Papai, não foi de propósito. Eu derrubei o computador.

Os dois mil reais que havia investido no computador passaram pela mente de Arnaldo, mas não deixou este pensamento transparecer. Olhou ao redor e viu teclado e mouse jogados ao chão. Nada demais. Aliviou-se. Prosseguiu calmamente:
- Como foi que você derrubou essas coisas, Liz?
- Eu fui me levantar. O fio do fone de ouvido enroscou no computador. Foi então que o computador caiu.

Arnaldo procurou um lenço para oferecer à Liz, para que enxugasse as lágrimas, mas não encontrou. Ofereceu a própria camisa:

- Liz, vem cá. Limpe suas lágrimas aqui, na camisa do papai.

Ela acedeu. Arnaldo continuou:
- Vou explicar. Isso que você derrubou é só o teclado e o mouse. São coisas baratas. Se quebrar, eu troco sem problemas. Não precisa chorar, viu?

Liz se acalmou e perguntou:
- Quer dizer que está tudo bem?
- Sim, tudo bem.

Arnaldo indicou então a CPU, apontando-a:
- Você vê aquela caixa?
- Sim.
- Aquele é o cérebro do computador - disse, tentando ajustar as palavras à linguagem da menina.

Prosseguiu:
- Aquela parte você deve evitar de deixar de cair porque custa bastante dinheiro para consertar. Liz, só quero te dizer mais uma coisa.
- O que, papai?
- O computador é caro e é difícil para nós termos que comprar um novo, se ele quebrar. Tome cuidado quando for se levantar, principalmente com os fios. Só que eu quero que você saiba que você é mais importante. Você vale mais do que qualquer objeto que nós temos, e não importa o que aconteça, eu me importo mais com você do que com as coisas materiais. Entendeu?
- Entendi.
- Agora vamos colocar tudo isso em cima da mesa de novo?

Com o equipamento já em ordem, Liz indagou:
- Você pode colocar um jogo para mim?
- Liz, já são nove horas da noite. Hora de dormir.
- Ah, me deixa jogar mais um pouquinho.
- Tudo bem, até eu terminar de lavar a louça.

Arnaldo voltou então à cozinha, feliz pelo que teve a oportunidade de ensinar à Liz.

domingo, 13 de julho de 2014

Andarilho Por Uma Noite

Dois meses na capital e ainda nenhum emprego. Esse dia era para terminar como qualquer outro, voltando para casa, sem qualquer novidade, não fosse aquela ligação de Daniela. Uma oportunidade para trabalhar fazendo faxina. Segundo ela, coisa simples: varrer o chão, tirar o pó, jogar o lixo, lavar a louça.

Por outro lado, de que me vale o diploma universitário? Eu pensei que aqui as coisas seriam mais fáceis. Cidade grande, mais oportunidades. Só que, o que eu tenho de fato? Digo, além de um pequeno quarto alugado dentro de uma casa, em que preciso dividir o banheiro e a cozinha com outras pessoas? Nem sequer um apartamento só para mim. Nem mesmo uma TV eu possuo para poder me entreter um pouco. Minhas economias estão se esvaindo e logo não terei como manter o mínimo que tenho à disposição agora. A questão,  nesse momento, é sobrevivência.

Porém, como eu estava dizendo, esse dia era para terminar como qualquer outro, até que a Dani me disse que este escritório precisa de uma pessoa para fazer a limpeza. Quem estava lá (até hoje) foi demitido, ou pediu demissão. Não sei. O fato é que amanhã cedo, às seis horas, se eu estiver no lugar certo, a vaga é minha. O problema é que eu não tive tempo de conferir um mapa, nem de verificar os percursos de ônibus. A estação de metrô é aqui do lado, porém o metrô não funciona tão cedo. Eu não chegaria a tempo.

Eu simplesmente não posso dar a mim mesmo o luxo de ir para casa, tomar um banho, dormir, e chegar aqui (nesse mesmo lugar em que estou), para então começar a trabalhar. Eu preciso aguardar, começando agora no final da tarde, até o amanhecer. Na verdade, as coisas ainda não são tão simples assim. Eu tenho um número de telefone, anotado em uma folha de papel, e é para este número que eu devo telefonar amanhã cedinho. Só então eu vou saber o endereço do escritório no qual eu vou trabalhar.

***

O Sol começa a se esconder. No entanto, não consigo observar o por do sol. Simplesmente há prédios demais ao meu redor para que eu possa apreciar a visão. As pessoas deixam as lojas e, uma hora depois, praticamente todas estão fechadas.

Tenho vinte reais no bolso. Apesar de não ter muito, não gosto de andar sem dinheiro. Nunca se sabe quando se vai precisar. Fico tentado a comer algo. Ainda há algumas lanchonetes e bares abertos, mas fico com pena de gastar o dinheiro. Talvez eu aguente até o outro dia.

Começo a andar pela vizinhança, tentando encontrar algo para pensar. Uma pracinha interessante, com algumas esculturas. Alguns centros comerciais que poderiam me chamar a atenção se não estivessem fechados. Sento-me em um pequeno muro. Como seria bom se eu tivesse alguns daqueles jornaizinhos gratuitos de metrô, só para me distrair...

A noite se adianta e aumenta a fome, o desconforto, o frio e o ócio. Já é praticamente uma hora da manhã e reflito que de nada adianta estar pronto para trabalhar na manhã seguinte se estiver morto de fome. Na realidade não acredito muito neste argumento, mas parece suficiente para me decidir a procurar algum lugar para comer. Só que tudo está fechado. Como não tenho mais nada a fazer, continuo andando pela redondeza à procura de algum estabelecimento aberto.

Enfim encontro uma lanchonete. Sento-me à uma mesa e a garçonete se aproxima:
- Boa noite! O que o senhor deseja?
- Um x-salada e uma coca-cola, por favor.

Ela anota meu pedido e se retira. Como é bom estar ali, confortavelmente sentado. Minutos após ela retorna, trazendo o meu pedido. Eu saboreio lentamente cada mordida. Minha garganta está estranha. Não consigo engolir facilmente. Penso que estes últimos meses têm me castigado mais do que eu esperava. A garçonete percebe minha dificuldade e me chama a atenção, preocupada:
- O senhor está bem?
- Sim. Tudo bem. Não se preocupe.

Ela assentiu.

Agradeço-lhe. Termino minha refeição, peço a conta e pago. Quase dez reais. Como eu gostaria de permanecer ali sentado... Porém não me parece uma atitude educada. Levanto-me e volto a caminhar.

***

Mendigos acomodam-se por todas as calçadas. É curioso como que à tarde não se vê miséria na região central, como se não existisse. Certamente os lojistas procuram espantá-los dali para que não "perturbem" a clientela. Na realidade, eu até mesmo tinha a ilusão de que houvesse poucos na cidade. Só que agora percebo que eles estão apenas espalhados durante o dia, e começam a se encontrar na madrugada, como uma estranha comunidade.

Perto de mim está uma mulher envolta em um cobertor de lã. Sento-me ao seu lado. Como a invejo! Começo a conversar:
- Boa noite, senhora!
- Boa noite... - responde timidamente.
- Está fazendo frio hoje, não está?

Ela olha para mim mas parece não me enxergar. Seu olhar está distante, como que tentando alcançar memórias antigas. Ela prossegue:
- Moço, às vezes eu tenho a impressão de que estou sonhando, ou melhor, que estou tendo um pesadelo. É como se eu fosse acordar a qualquer momento, de novo em minha cama.
- Como assim?
- É que eu tive um bom berço e uma boa educação. Não era para eu acabar assim. Como que isso foi acontecer?

Perdeu-se de novo, em suas reflexões, e eu só consigo pensar em seu cobertor. Como parece tão quentinho! A vontade que tenho é de pedir-lhe um espaço, mas eu não tenho coragem de fazer isso. Resolvo andar mais um pouco para procurar alguma distração. Despeço-me.

***

Percebo agora que, por mais que eu me empenhe, nada pode realmente me chamar a atenção. Estou só, longe dos mendigos, e sento-me em um banco junto ao ponto de ônibus. Mal agasalhado contra o frio, começo a tremer. Até mesmo minha boca treme. A noite está realmente muito fria. Não sei se vou aguentar até de manhã cedo. Penso em hipotermia. Fico imaginando inclusive se poderia morrer ali por causa disso.

Os minutos se passam e se somam em horas. Consigo dormir de tempos em tempos, só para acordar pouco depois. Ainda assim, dormir dessa forma é melhor do que não dormir nada, não é mesmo?

**

Finalmente, a luz da aurora começa a surgir. O frio se ameniza. Jà está quase na hora de fazer a ligação. Pego o pedaço de papel no bolso. Procuro a caneta. A caneta... Onde diabos está a caneta? E se eu tiver que anotar um outro telefone? E se eu me esquecer do endereço que me informarem? Praguejo. Chuto um objeto deixado na calçada. Começo a falar sozinho em voz alta. Pergunto a mim mesmo como pude ser tão idiota.

As pessoas me observam e se perturbam. Enfim, um andarilho com cabelo em estilo rastafari se aproxima:
- Qual é o problema, amigo?

Uma simples pergunta que traz à tona meu equilíbrio novamente. É curioso o poder de uma indagação, pois consegue nos fazer pensar. Se quer ensinar algo a alguém, não lhe dê respostas. Faça-lhe as questões certas. É claro que eu poderia contar com minha memória para anotar os dados que preciso, só que eu estou estressado. O detalhe da caneta foi a gota d'água.

No entanto, algo na voz do rapaz soa diferente. Ele tem um sotaque estrangeiro. Respondi-lhe:
- Nada importante. Só uma noite difícil.
- É? Porque?
- É que preciso fazer uma ligação hoje cedo. É para conseguir um emprego. Eu passei a noite aqui, nesse lugar, só para não perder a hora. Só que eu tenho um pedaço de papel mas não tenho uma caneta. Eu não sei se vou ter que anotar outro telefone. Provavelmente  eu vou ter que anotar um endereço.
- Ainda não entendi. Qual é o problema?
- O problema é que todos os estabelecimentos estão fechados agora. Não tem onde comprar uma caneta.

Ele sorri:
- Esse é o problema?
- Sim, esse - respondi.
- Deixe comigo, já resolvo.

Então ele entra em um hotel, voltando dois minutos depois:
- Está aqui sua caneta!

Simples assim, e era uma solução que não havia passado por minha cabeça. Cedi, enfim, à minha curiosidade sobre seu sotaque:
- Amigo, eu percebi o seu modo de falar. Você não é daqui do Brasil, é?
- Não, eu sou da Jamaica. Eu vim para cá com minha esposa já fazem quatro anos. Daqui há pouco vou te apresentar ela.
- E você não sente vontade de voltar para lá?
- Sinto, aliás eu vou fazer isso.

Telefono para saber onde iria fazer faxina. Uma voz masculina me atendeu do outro lado da ligação:
- Alô?
- Alô, meu nome é Davi. Uma amiga minha passou seu número. É sobre um trabalho de faxina em um escritório.
- Ah, sim! A Daniela me informou. Então, Davi, você tem que se apressar. Já devia estar trabalhando, na verdade.

Passou-me o endereço e anotei-o, voltando-me de novo para o jamaicano:
- Deu tudo certo.

Perguntou-me:
- Posso te fazer uma proposta?
- Faça.
- Você tem dinheiro?
- Mais ou menos dez reais.
- Então, eu tenho um cartão de metrô, com umas trinta passagens. Quer trocar pelo seu dinheiro?

Desconfiei. Ele poderia ter achado um cartão perdido. Poderia não ter crédito algum. Poderia ser falso. Poderia ser um golpe. Não aceitei, mas fiquei com pena. Eu gostaria de ajudá-lo. Logo depois, ele me apresenta à sua esposa, que por sinal fala muito pouco. Talvez não conheça bem a língua portuguesa, ou pode ser apenas reservada,  ou tímida. Agradeci a ajuda e comecei a caminhar, em busca do endereço que tinha anotado.

***

Chego ao endereço. Uma senhora simpática me atende:
- Oi. Você é o novo rapaz da limpeza?
- Sou - respondi.
- E qual é o seu nome?
- Davi.
- Davi, você está atrasado, mas ainda restam cinquenta minutos. Dá tempo. Venha comigo.

Subimos dois lances de escada até o primeiro andar. Abriu a porta e começou a mostrar-me o trabalho:
- Você tem que tirar o pó das mesas, tomando cuidado para não mexer em nada. Primeiro esta sala, depois aquela, depois aquela, aquela e finalmente aquela...

Eu não havia conseguido memorizar nada, na verdade. Ela continua:
- Tem que varrer o chão, jogar o lixo, lavar a louça... Aliás, tem máquina de lavar. E vai ter que limpar o banheiro. Só isso. Você consegue fazer?

Estranho como estive tão decidido em passar a noite na rua, em meio aos sem-teto, e agora, na hora de desistir de minha tão sonhada carreira por causa de minha própria sobrevivência, é tão difícil dar o passo final. Ela insistiu:
- Você tem experiência?
- Não...

Soltou um suspiro e deu-me mais uma chance:
- O trabalho não é difícil. Você consegue. Você quer tentar?

***

Eu gostaria de dizer que assumi aquele trabalho, que tudo saiu como se esperava, e que passei a trabalhar ali todo dia, mas não foi isso que aconteceu. Quando eu estava prestes a dar minha resposta, muita coisa passava por minha cabeça.

Lembra quando comentei a respeito do poder de uma pergunta, especialmente em nos tornar mais conscientes para produzir a resposta? Pois então, uma inumerável quantidade de fatos assolava meus pensamentos, estimulados por aquele "Sim" ou "Não" que eu precisava pronunciar. As imagens mais fortes que vinham à mente eram da mendiga, que não se consolava pelo seu destino, e do jamaicano que queria retornar à sua terra natal, junto com a esposa. Eram pessoas que haviam feito escolhas, e haviam se arrependido destas escolhas.

Naquele momento eu estava diante de uma bifurcação que dizia respeito á minha própria vida. Porque, afinal, eu estou nesta cidade? Em busca do quê vim para cá? Não seria melhor voltar à minha origem do que seguir a trilha que estava prestes a adentrar? Não fazia sentido. Respondi que não poderia assumir aquela tarefa. A mulher bufou, encolheu os ombros, e retrucou:
- Pelo jeito vou ter fazer tudo sozinha. Essa agência me paga...

Agi certo ou não? Falhei em um desafio ou assumi outro maior? Acredito que só o tempo me dará esta resposta. O pior é que meu celular está tocando. O nome que aparece é Dani...

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Não, obrigado...

Caminhando à noite, na direção do Shopping Mueller, Sílvio acabara de atravessar a rua quando deparou-se com um bar. Inspecionou superficialmente o local. Algumas pessoas estavam sentadas em cadeiras diante de um balcão iluminado, bebendo e comendo animadas. Dentre todos os presentes, destacou-se uma mulher loira, com batom vermelho, de cabelos compridos e pele clara. Percebeu que ela estava de calça jeans e uma camisa de mangas curtas, em tons pastéis.

Sílvio então, sem reparar, não caminhava mais. Apenas a observava, a mais ou menos dez metros de distância pois o bar era comprido e espaçoso. Algo havia lhe cativado no sorriso daquela mulher. De repente, ela vira o rosto em sua direção e acontece um encontro de olhares. Ela se levanta e começa a andar, ainda sorrindo e aproximando-se dele, sem perder o contato visual.

Ele se pergunta o porquê daquilo estar acontecendo quando o normal seria que ela simplesmente desviasse seu rosto, ou ele o fizesse. Porém, por algum motivo que não sabe explicar, ele permanece ali. Talvez seja a curiosidade de descobrir a razão de um comportamento que lhe parece tão incomum. Ela então se aproxima e expõe diante dele a verdade nua e crua:

- Oi amigo! Você quer fazer um programinha?

Aquilo o pegou de surpresa. Devia ter imaginado a explicação mais banal: a mulher é uma prostituta. Óbvio que não aceitaria a proposta. Jamais havia tido uma relação sexual dessa forma. Respondeu de maneira automática, sem refletir muito a respeito:

- Não, obrigado...

Começou a caminhar novamente, não mais percebendo a mulher que havia deixado atrás de si. "Ela tem realmente um belo sorriso", pensou. Continuou refletindo que, mesmo sendo uma prostituta, ela não se comportava de forma vulgar. pelo menos até o momento em que fez a proposta. E mesmo assim, não foi numa linguagem tão chula.

Ela o fez pensar nos quase dois anos em que estava sozinho, solteiro e sem se relacionar com mulher alguma. Estranhou como aquela garota que vira há pouco provocou nele estas reflexões tão profundas a respeito de sua vida sentimental. Percebeu que, apesar das aparências, ela realmente lhe inspirou algo bom. Não pensava mais a respeito dela como uma prostituta e sim como alguém que talvez não tivesse tido muita sorte. Fantasiou até mesmo que, não fossem as circunstâncias e fosse a realidade diferente, poderia ser até uma namorada. Poderiam caminhar de mão dadas. Poderiam se abraçar e passear no shopping à noite.

"Certo, estou muito fragilizado para pensar algo assim. Imagine, por causa de uma prostituta...", refletiu. Começou a dobrar a esquina quando foi interrompido por um grito:

- Ei, moço! Só um momento!

Ela continuava no mesmo lugar em que a havia deixado. Estava observando-o à distância. Sílvio nada disse. Apenas olhava atento. Ela continuou:

- Muito obrigada por ter sido gentil comigo!

Sílvio esboçou um sorriso e fez um gesto com a mão, como que dizendo "Não tem de quê". Continuou a dobrar a esquina, saindo do campo de visão da garota que o observava. Ele estava com uma expressão alegre em seu rosto. Havia feito a diferença para alguém.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Edgar, o Dentista

Eu era ainda criança quando vi Edgar pela primeira vez. Foi no dia que meu pai me levou ao seu consultório. Recordo-me da primeira impressão que tive: um homem alto, de sobrancelhas grossas, cabelos negros e curtos, pele clara e os olhos característicos dos japoneses e de outros asiáticos. Estava sorridente (quase sempre Edgar é sorridente). Porém eu era pequeno e assustei-me. Não sei porquê algumas pessoas transmitem tranquilidade às crianças e outras não o fazem, não importa quão simpáticas sejam.
Seus pais deram-lhe um nome japonês: Yoshiro. No entanto, nunca sentiu-se confortável com o nome com que fora registrado. Por isso escolheu para si mesmo chamar-se de Edgar, e é assim que gosta de ser conhecido.

No consultório, um fato que chamou-me a atenção já de início foram seus diplomas e certificados. Eram muitos, todos distribuídos pela parede e protegidos por uma superfície de vidro. Aquela seria a primeira de muitas vezes em que eu iria tratar-me com ele. Enquanto aguardava a vez, entre uma revista e outra, eu os admirava. Acredito que nunca deixei de olhá-los, mesmo que de relance, sempre que voltei ali. Cursos, especializações das mais diversas, em muitos lugares e muitas épocas. Eu sempre perguntei a mim mesmo como podia ser possível alguém dominar tantas técnicas e especialidades. É algo que até contradiz o próprio conceito de especialidade. Afinal, se você tem diversas delas, você pode ser considerado um especialista?

Se eu não conhecesse Edgar, eu poderia dizer que todos aqueles documentos eram apenas conversa fiada, e que não era possível alguém conhecer tanto sobre seu ofício. Mas eu o conheço. Edgar é, de fato, um odontologista capaz de fazer qualquer coisa. Do mais banal ao mais complexo. Seja uma simples limpeza, seja um canal, uma obturação, uma extração, uma prótese, etc. Nada lhe causa insegurança.

Na realidade, há uma ressalva: extrações deixam-no impaciente. Certa vez eu perguntei a ele se seria indicada uma extração em um dos meus dentes do siso. Respondeu-me de uma forma, no mínimo, inusitada:
- Rogério, eu posso até extrair esse seu dente, mas vou cobrar mais do que o faria para um canal...

Espantei-me. Era uma forma de cobrar que me parecia bizarramente invertida. Repliquei:
- Nossa! Porque isso? A mim parece não fazer sentido algum.
Ele prosseguiu:
- Na semana passada eu tratei uma doutora, professora universitária. Você não imagina quanto trabalho eu tive para extrair um dente dela. Por isso eu digo: vamos cuidar desse dente ao invés de extraí-lo. Isso vai lhe sair muito mais barato.
E assim o fizemos.

Certa vez eu precisei tratar um canal.  Edgar propôs uma alternativa:
- Bom, este é um caso de canal. Eu posso tratá-lo da forma que se faz usualmente, porém existe uma outra opção.
- Outra opção?
- Sim. É algo que não se faz mais, mas que eu acredito que vai dar certo. Eu posso, como diria... mumificar esse canal. Ele simplesmente vai secar e perder a função.

Edgar e suas experiências. Concordei em deixá-lo realizar o procedimento. Muitos anos se passaram então e eu havia viajado. Mastiguei algo que acabou por quebrar aquele dente. Como iria passar muitos dias ali, resolvi ir a uma clínica odontológica. Após analisar uma radiografia de meu dente, um dos profissionais resolveu pedir ajuda ao vizinho, do outro consultório:
- Não sei como interpretar esta radiografia. Veja só (mostrando a radiografia). Não foi feito o canal, mas aparentemente não há o nervo.
O colega chamou um outro que, enfim, reconheceu a técnica que havia sido utilizada. Voltou-se para mim:
- Esta técnica é bem pouco usual. Não está errada, mas não se costuma realizá-la. Não foi feito o tratamento do canal mas o nervo foi morto. Você estava ciente disso?
- Sim. Eu estava - confirmei.
Esta, na realidade, não foi a única vez em que precisei explicar o tratamento deste meu dente.

Pelo que soube, não demorou muito para que Edgar se tornasse o dentista mais requisitado da Vila Suíça. Digo dentista ao invés de odontologista porque é assim que o povo se habituou a chamá-lo, e eu me incluo no povo. Sua fama cresceu, fosse por todas suas especialidades, fosse pelos tratamentos com valor realmente em conta que sempre praticou, e fosse principalmente pelo prazer com que lida com sua clientela, sempre contando histórias. Certa vez contou-me uma delas:
- Vou contar-lhe algo sobre o Japão.
- Fique à vontade - balbuciei com um lado da boca todo anestesiado.
- Aqui no Brasil é muito perigoso para as crianças atravessarem as ruas sozinhas. Concorda?

Seria certamente mais fácil para mim se eu apenas precisasse ouvi-lo, porém ele frequentemente solicitava que eu interagisse. Eu nada disse e ele repetiu:
- Concorda?

Não havia o que fazer. Eu precisava dar-lhe um retorno:
- Sim. Concordo.
Ele continuou:
- Pois então, no Japão há bandeirinhas para atravessar as ruas. A última criança a atravessar leva a bandeirinha consigo para sinalizar aos condutores dos veículos de que não há mais crianças a passar. Você sabia disso?
- Não. Não sabia - respondi admirado.
- Um país com educação no trânsito tem de dar segurança aos pedestres, e principalmente às crianças - concluiu.

Noutro dia, quando fui ao trabalho, conversei com Sandra, uma colega também de origem japonesa, e contei-lhe o que Edgar tinha dito a mim. No seu ponto de vista, aquela era uma história hilariante. Uma invenção da mente de meu dentista. A imagem pessoal que eu tinha de Edgar feriu-se com aquele comentário.

Dei atenção a algumas pessoas que o julgavam de forma depreciativa apenas por sua simplicidade aparente. Pessoas que consideravam "o livro pela capa", como se costuma dizer. Procurei outros profissionais e descobri que se dividiam em especialidades, cada um enxergando apenas parte do que deveria ser feito. Tratei e retratei meus dentes com estes. Quando comparados a Edgar sempre aparentaram saber menos e os resultados dos tratamentos eram menos permanentes do que quando Edgar os conduzia.

Hoje uma obturação caiu e pensei em Edgar, após muitos anos sem vê-lo. Lembrei-me da história da bandeirinha e procurei alguns termos no Google: bandeirinha, atravessar, rua, Japão. Escrevi tudo junto, sem vírgulas e sem aspas. Encontrei já de cara: "Japão é assim: BANDEIRINHA PARA ATRAVESSAR A RUA". Fiquei surpreso com o achado. Edgar estava certo desde o início. Procuro seu telefone na lista e o encontro. Teclo os dígitos, identifico-me e ouço sua voz em resposta:
- Oi Rogério! Há quanto tempo! Eu nunca mais o vi por aqui.
- Edgar, eu gostaria de tratar um dente. Eu posso ir aí hoje?
- Mas é claro. Pode vir sim. A tarde está bem folgada.

Chego então à Vila Suíça e subo as mesmas escadas, ansioso para revê-lo e para desejar-lhe um Feliz Ano Novo, com votos sinceros de longos anos de vida e muita saúde. É sempre bom quando se reencontra um velho amigo.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Angelina

"E então, o que acha de minha proposta?". A pergunta ecoava na mente de Hélio. Já havia se formado como Tecnólogo em Processamento de dados fazia um ano. Tinha realizado um bom estágio em São Paulo, onde realmente aprendera muito e, é claro, copiou em um pendrive as ferramentas necessárias para que pudesse trabalhar por conta, quando deixasse a empresa, incluindo uma linguagem de programação de computadores. A proposta de Cassiano não era exatamente a que imaginava em seus sonhos, mas tantos se formam e não conseguem se encaixar no mercado de trabalho, e ele já estava sem emprego há um tempo considerável.

Era sexta-feira e até que tudo tinha acontecido rápido naquele final de tarde. Cassiano havia explicado:
- O que eu quero que você desenvolva é um pequeno controle financeiro. Nada muito complexo. Na verdade eu já tenho tudo em mente e posso lhe instruir. Você só vai precisar traduzir isto para o computador.
- Mas, Sr. Cassiano, eu preciso lhe dizer que não tenho experiência alguma com sistemas desse tipo. Até agora eu só desenvolvi alguns sistemas para a área de estoques e compras. Não sei se tenho o perfil adequado para este projeto - Hélio replicou.

Na verdade, Hélio temia aceitar aquela proposta. Não confiava suficientemente em si mesmo. Não que fosse o caso de julgar-se incapaz, mas sabia que não era rápido. Seu maior medo era enfrentar uma situação de pressão maior do que pudesse aguentar, embora soubesse intimamente que poderia enfrentar qualquer desafio, mesmo a contragosto, pois já tinha passado por isso.

Porém Cassiano estava decidido. Os argumentos de Hélio contra si mesmo não o convenciam. Colocou-o contra a parede com aquela pergunta:
- E então, o que acha da minha proposta?

Se existisse uma saída honrosa, certamente Hélio a seguiria. Mas não havia outra opção senão aceitar a oferta:
- Aceito, Sr Cassiano.
- Muito bem! Você começa então já na próxima segunda-feira - concluiu com satisfação.

"Segunda-feira", refletiu Hélio. "Que bom! Pelo menos assim ainda tenho alguns dias de liberdade antes de começar a trabalhar...". No que dizia respeito ao trabalho, Hélio era de um pessimismo quase incorrigível. Até mesmo algo que lhe soava otimista era, no fundo, pessimista.

***

Segunda-feira. Angelina, a secretária, o atendeu. Ele sequer a havia cumprimentado. Então Cassiano o chamou para começarem a conversar sobre os detalhes:
- Hélio, o que eu realmente quero fazer é uma contabilidade gerencial, para simples conferência.
- Contabilidade? Isso não é muito complexo?
- Não. Não é o caso. É apenas um controle interno.

Hélio nunca se perguntou sobre o motivo de existir um sistema de contabilidade paralelo, mesmo que simplificado. Na realidade esta questão sequer se aproximou de sua mente. Hélio era essencialmente um técnico. Não se prendia a considerações mais profundas. Poderia ter questionado se tratava-se de algo ilícito mas, embora seu cérebro funcionasse muito bem com questões de lógica pura, não funcionava tão bem quando tinha que lidar com as questões práticas da vida real.

De fato, reagia muitas vezes de uma forma desconcertantemente emocional. A simples menção da palavra "contabilidade" causava-lhe a impressão de conter uma complexidade imensurável. Se pudesse, sairia correndo dali. Mas Cassiano mostrava-se paciente e parecia estar disposto a passar-lhe todos os detalhes:
- Eu pretendo controlar diversos clientes meus pelo sistema - Cassiano começou a especificar.
- Ou seja, você sempre vai selecionar primeiro o cliente com que deseja trabalhar, antes de mais nada -  observou Hélio, sem reparar que havia trocado a palavra "Sr" por "Você". Seus instintos começavam a aflorar para enfrentar o desafio que se propunha, mesmo que não o percebesse conscientemente.
- Isso mesmo. Outro detalhe é o plano de contas. Todos os valores tem que ser armazenados em contas e estas contas juntas formam um plano de contas.
- Esse plano de contas pode ser igual para todos os clientes?
- Não, cada cliente tem o seu e são diferentes.
- Mas eu posso criar um modelo desse plano para facilitar a inclusão de novos clientes?
- Pode - ponderou Cassiano.

Passaram horas conversando, trocando detalhes sobre como seriam os lançamentos e sobre os relatórios que seriam criados. Hélio tinha em mente criar um sistema que permitiria entrar novos dados a qualquer momento e, ainda assim, os saldos se atualizariam instantaneamente, tornando possível a consulta de valores referentes a qualquer data que fosse escolhida. Quando tudo se tornara claro, definido, e devidamente anotado, já estava pronto para começar seu trabalho.

Mal saíra do escritório de Cassiano quando Angelina o interrompeu:
- Aceita um cafezinho? Fiz agora mesmo.
- Aceito sim - disse Hélio. Hélio jamais recusava um gole de café.
- O seu nome é Hélio, não é? Meu nome é Angelina.

Hélio pensou sobre a indiscrição que havia cometido, pois já começara a trabalhar e nem sequer se importara de perguntar à secretária sobre seu nome. Prosseguiu:
- Sim, meu nome é Hélio. O Cassiano me contratou para desenvolver um sistema de contabilidade.
- Eu sei. Ele me contou que você vai criar um programa de computador. Você vai vir às tardes, não é?
- Sim. Todas as tardes.
- E eu vou operar o programa todas as manhãs. Como nós temos apenas um computador, nós vamos precisar revezar.

***

Hélio trabalhava, portanto, durante meio período, enquanto a jornada de trabalho de Angelina era de oito horas diárias. Quando Hélio chegava, conversavam sobre ameninades, bebiam café e às vezes escapavam algumas piadinhas entre os dois. Cassiano quase não fazia parte de suas rotinas, mas de tempos em tempos chamava Hélio para sugerir alterações no sistema.

Certa vez Cassiano o chamou para verificar a possibilidade de tratar moedas estrangeiras:
- Hélio, acredito que poderíamos trabalhar também com moedas estrangeiras. Poderíamos começar pelo dólar.
- É uma ideia interessante. Porém há alguns pontos que tenho dúvidas sobre como implementar - refletiu Hélio.
- Que tipo de dúvidas?

Hélio explicou:
- Um dos princípios básicos neste sistema é que os saldos são calculados pura e simplesmente sobre a soma dos lançamentos, correto?
- Correto.
- Nesse caso, eu vou precisar converter os valores lançados de acordo com a cotação da moeda estrangeira. Certo?
- Certo.
- Mas pode ser que a moeda valorize ou desvalorize. Então os saldos calculados vão flutuar de uma data para outra apenas por causa da cotação do dólar.
- Novamente correto.
- A princípio eu ainda não tenho ideia de como fazer isso sem recalcular todos os lançamentos, todo dia. Mas este não é todo o problema.
- Não é?
- Sim. Pelo menos teoricamente, é possível que haja alguns lançamentos em moeda estrangeira que não devam ser recalculados devido a oscilação de cotações.
- Também está correto - assentiu Cassiano.
- Nesse caso, qual dos dois padrões o sistema deve assumir?
- Os dois.
- E você tem alguma ideia de como fazer isso?
- Não.
- E eu também não - confessou Hélio.
- Melhor deixarmos este assunto de lado - desistiu Cassiano.

***

Noutro dia Cassiano chamou-o novamente. Dessa vez pretendia definir sobre como seria o fechamento mensal. Em determinado momento, Hélio o interrompeu:
- Uma vez que seja realizado o fechamento, poderá ser desfeito?
- Não. Uma vez fechado o mês, está definitivamente fechado - afirmou Cassiano, de forma decisiva.
- Ok. Vou pressupor isso então - assertiu Hélio.

E muitas outras alterações iam surgindo. Algumas se tratavam de detalhes superficiais e um tanto supérfluos. Algumas se tratavam de reestruturações muito complexas. Algumas eram descartadas já no momento em que estavam sendo definidas. O pior, no que dizia respeito a Hélio, era que Cassiano mudava muitas vezes de opinião, o que o levou a criar diversas versões alternativas do sistema, armazenadas cada uma das quais em pastas diferentes no computador. Ele próprio se confundia sobre em qual versão estava trabalhando. Foi quando, numa das mudanças de opinião de Cassiano, acabou por excluir todos os dados do sistema através de uma deleção impensada.

Quando se deu conta do que havia feito, procurou não se desesperar. Pensou nas alternativas. Poderia recuperar as informações excluídas? Não dispunha de um utilitário desse tipo. Poderia recuperar um backup? Precisava conversar com Angelina para descobrir se havia algum:
- Angelina?
- Sim?
- Vocês realizam backup do sistema com alguma frequência?

Angelina sorriu, um tanto desconcertada. Respondeu:
- É claro que não, Hélio. Você é o responsável pela informática na empresa. Cabe a você realizar as cópias de segurança.

Hélio engoliu em seco. Aquela era sua última esperança e, pior, ele (e somente ele) era o responsável pelo que tinha ocorrido. Estava diante de seu pior pesadelo profissional. Havia eliminado todos os dados do sistema que tinha construído. Desabafou:
- Angelina, sabe o sistema de contabilidade que eu desenvolvi?
- Sim...
- Pois então, eliminei de forma irreversível todos os dados. Não sei o que fazer. Minha última esperança era o backup.

Angelina abriu um largo sorriso e então disse:
- Você perdeu os dados que foram informados ou o programa que você criou?
- Eu tenho diversas versões do programa, em muitas pastas. Mas sobre os dados, eu tinha apenas aquela cópia.
- Então não tem problema. Espere um pouco que vou lhe mostrar porquê.

Hélio aguardou alguns minutos ansioso. O que será que Angelina poderia fazer por ele? Angelina voltou com diversas pastas em suas mãos. Explicou:
- Hélio, aqui estão todos os relatórios impressos do sistema. Clientes, planos de contas, lançamentos e tudo o mais que foi cadastrado. Tudo o que você tem a fazer é digitar.

O semblante de Hélio se iluminou por instantes, logo depois deixando-se dominar novamente pela preocupação. Indagou:
- Mas eu vou precisar de alguns dias para poder digitar tudo isso.
- Deixe isso comigo - assegurou Angelina.

Hélio começou pelo cadastro dos clientes, os quais eram relativamente poucos. Depois cadastrou os planos de contas de cada cliente (felizmente havia um modelo padrão de planos de conta). A real dificuldade foi digitar todos os lançamentos, mas em uma semana havia concluído o trabalho. Chamou Angelina e disse-lhe:
- Tenho uma notícia boa para lhe contar. Terminei de cadastrar todos os dados!
- Que bom! Eu já não tinha mais como me livrar do Cassiano - confessou Angelina.

Hélio raciocinou que Angelina deveria ser quem realmente fazia a empresa funcionar. Afinal Cassiano não o havia importunado por um dia sequer naquela semana em que estava "resgatando" os dados do sistema.

***

Alguns dias se passaram e Cassiano o chamou para sua sala. Disse-lhe:
- Eu sei, viu?
- Sabe o que? Por favor seja claro - respondeu Hélio, suando frio.
- Eu sei que você é muito, mas muito lento.

Hélio se sentiu ofendido, mas não conseguia deixar de perceber um aspecto cômico naquele comentário. Se Cassiano soubesse o que realmente ocorreu...

***

No restaurante Pastel Mel, na avenida Higienópolis, os cúmplices do segredo saboreavam duas deliciosas panquecas. Angelina confidenciou:
- Sabe, não me sinto realizada profissionalmente onde estou agora.
- Eu também não - concordou Hélio, em solidariedade.

Hélio prosseguiu:
- Não é um dos trabalhos mais motivantes e o salário também não é dos melhores, principalmente para mim que trabalho meio período. Sem mencionar, é claro, que não sou registrado nem tenho contrato de qualquer tipo. Sou verdadeiramente um trabalhador informal.
- É verdade. A sua situação é pior que a minha. Mas quer saber de uma coisa? Eu estou planejando sair da empresa.
- Mesmo?
- Sim. Preciso dar um rumo à minha vida.
- Que pena. Você é uma das poucas coisas boas deste trabalho - Hélio sorriu.

***

Na semana seguinte, Cassiano o chama para uma nova reunião:
- Hélio. Cometi um erro. Preciso desfazer o fechamento deste mês.
- Cassiano, você lembra que afirmou categoricamente que o fechamento do mês nunca precisaria ser desfeito? É assim que implementei.
- Pois agora preciso! Tem que ser desfeito.
- Sinto muito, mas não vai ter como fazer isso.
- Eu não acredito que você não teve competência para prever essa situação - desafiou Cassiano.

Já não se tratava de uma discussão na esfera profissional. O insulto era pessoal. Hélio retrucou:
- Se sou incompetente, eu nem deveria estar aqui.
- Nesse ponto eu concordo - Cassiano provocou.
- Então eu peço demissão!

Como se fosse necessário pedir demissão, afinal legalmente Hélio nem estivera ali. Havia dito o que estava entalado em sua garganta e que até então não tinha encontrado coragem para dizer. Cassiano finalizou a discussão:
 - Concordo. Melhor assim.

Hélio saiu nervoso da sala. Angelina havia escutado todo o final da conversa e quis consolá-lo, porém Hélio não lhe permitiu:
- Prefiro não falar sobre isso agora. Depois te conto tudo.
E saiu.

Já na rua, refletiu sobre os últimos minutos pelos quais havia passado. Estranhava estar se sentindo bem. Ironicamente perguntou-se em termos contábeis: "Qual foi o saldo positivo disso tudo? Apenas saí da mesma forma que entrei?". Refletiu. "Não. Eu aceitei um desafio e o levei bem mais longe do que imaginava ser capaz". Refletiu um pouco mais: "E tem mais uma coisa. Valeu por ter Angelina como amiga". Realmente havia saído lucrando.

sábado, 2 de novembro de 2013

Comida Saudável

"Mais um fim de semana que se foi.", pensou Arnaldo. A rotina é estressante, trabalhar durante a semana na capital e viajar às sextas-feiras para visitar a família no litoral paranaense, e já está quase na hora de preparar-se para viajar de novo, para a capital.

Certamente não é um estilo de vida confortável para alguém que prefere a rotina urbana. São pouquíssimas opções de lazer no litoral, normalmente separadas por quilômetros de distância. Como Arnaldo não tem carro, a opção é deslocar-se a pé ou de ônibus (o qual passa de hora em hora). E há, é claro, o desconforto da viagem em si - pessoas estranhas na rodoviária e no ônibus. Além disso tudo, há as compras de mercado eventuais que traz consigo e que já lhe causaram dor em sua mão direita devido ao peso, persistindo por semanas (mas descobriu que não há nada melhor que a prática regular de alongamento para evitar este tipo de problema).

Arnaldo decididamente não gosta de viajar. Sente-se ainda pior em dias de chuva, porém ultimamente o tempo tem estado bom. Mas enfim, agora é final de tarde e está de mãos dadas com seu real motivo de estar onde está: sua filha Eliza, ou Liz como ele costuma chamá-la. Ele está quieto, concentrado em seus próprios pensamentos, quando ela o interrompe:
- Papai?
- O que, Liz?
- Porque eu não tenho seios como as outras mulheres?

Ele esboçou um sorriso. A pergunta pegou-o de surpresa. É óbvio que a pequena menina de três anos de idade já é capaz de comparar-se com outras mulheres mais velhas. Respondeu da forma mais simples:
- É porque você ainda é muito novinha. Quando você crescer, vai ter seios da forma normal, como outras mulheres.
- Ahn..., é porque eu sou criança. É isso?
- Isso mesmo - confirmou Arnaldo.

O silêncio se prolonga por alguns instantes. A pequenina inicia novamente o diálogo:
- Papai?
- Fale, Liz. O que quer dizer?
- Eu não quero ter seios como os da mamãe.
- Como? Não entendi - indaga Arnaldo, um tanto confuso.
- Os seios da mamãe são moles. Eles ficam caindo.

Arnaldo esboça um novo sorriso. Dessa vez ele se esforça porque o que realmente gostaria é de "rachar o bico". Então explica:
- Tem que comer bastante comida saudável para ficar com seios bonitos. A mamãe não comeu quando era pequena.
- A mamãe não comeu?
- Não. Não comeu. Você vai comer bastante comida saudável?
- Vou sim.